Terreiros exercem papel político e social em Salvador
Alfabetização de jovens e adultos, oficinas de corte e costura, distribuição de cestas básicas, festas e trabalhos comunitários. A relação dos terreiros de candomblé e de suas lideranças com os territórios nos quais estão baseados vai muito além do culto aos orixás. “Eu não posso comer um bolo só, eu preciso dividir, eu preciso do outro”, diz a Ialorixá Mãe Iara de Oxum, do Ilê Tomim Kiosise Ayo, do bairro de Cajazeiras XI, em Salvador.
O terreiro se torna, assim, um centro político e social do bairro, irradiando processos organizativos, festejos, ações solidárias e práticas ancestrais de cuidado. “A importância do terreiro dentro da comunidade é buscar essa junção do familiar com o religioso, e dar esse suporte pra comunidade, trazendo afetividade, conselhos e acolhimento”, diz Néngua Kolere Kueto, também conhecida como Mãe Eli, do terreiro Sanzala de Nsumbu, em Águas Claras.
Os terreiros de candomblé tem uma importância imaterial para a cultura, economia, política de Salvador e da Bahia. Historicamente, tem sido um espaço fundamental para a resistência da população negra contra a exclusão e a violência racista, fazendo parte da geografia das cidades da Bahia. “A nossa religião é a felizarda de fazer isso: em distribuir, em ter o prazer de dar a comida, porque quando a gente dá, a gente recebe. A gente sente prazer em ver a mesa farta e em distribuir”, afirma Jozeane Leal, do Ilê Axé Oyà Omin, localizado no bairro Pedra Furada/Mont Serrat, em Salvador.
O papel político, social e religioso das lideranças dentro das comunidades de Salvador surge como impacto nas periferias e nos contextos de vulnerabilidades e ausência de políticas públicas. Mãe Selma, que vive no Nordeste de Amaralina, oferece oficinas de corte e costura dentro da sua comunidade, uma oportunidade de geração de renda para pessoas da comunidade. Ao mesmo tempo que forma costureiras para produzir roupas para os cultos do próprio terreiro. “Eu comecei a bordar pro povo de santo, comecei a ganhar meu dinheiro, até que consegui juntar algumas máquinas de costura para começar a ensinar”, conta.
Neste Papo de Terreiro, projeto do Voz do Axé (rede independente de comunicação e ativismo de religiões de matriz africana), essas lideranças fazem a conexão entre
suas trajetórias individuais e as histórias de seus terreiros e de suas comunidades. Confira a história dessas quatro lideranças, em primeira pessoa:
Néngua Kolere Kueto (Mãe Eli)
“Sou Elivalda dos Santos de Deus, filha do Sr. Edvaldo e Dona Lídia. Nasci na residência onde minha família morava, na Rua do Balneário, na Ladeira do antigo Paes Mendonça de Amaralina. Sou pedagoga de formação, atualmente funcionária pública de Camaçari. Fui aluna da Escola Cupertino de Lacerda, Polivalente de Amaralina e tornei-me normalista, no Instituto Central de Educação Isaías Alves ICEIA, onde me formei em magistério. Aos 16 anos decidi alfabetizar jovens e adultos em suas residências e aos 17 anos passei a lecionar em escolas particulares.
Aos 17 anos tive a primeira sintonia com os Nzilas que me acompanham, mas somente aos 29 anos, após conviver cinco anos como Ndumbe no Terreiro de Jauá, fui iniciada no dia 20/08/1998, num barco de cinco muzenzas. Em 23/02/2015, recebi O Kijingu de Néngua wa Nkisi e fundei a Sanzala Ntoto Ndanji Tatetu Nsumbu Kimbanda, Sanzala de Nsumbu, em Águas Claras.”
Yá Josy de Oyà
“Sou Jozeane Leal, nasci e me criei na Pedra Furada/Monte Serrat. Filha do pescador José Batista dos Santos e da marisqueira Joilda Leal dos Santos. Neta da rezadeira Vó Castorina Maria de Sousa Leal, que recebia um Boiadeiro. Apesar de ter maior respeito e dedicação à religião, infelizmente, não consolidou sua trajetória devido ao seu marido e à quantidade de filhos que teve. Foi através dela que entrei no candomblé, para dar seguimento ao que ela me entregou antes de falecer: sua casa para eu cultuar os Orixás, Caboclo, etc. Nascia aí uma Iyàlorisá e eu não sabia.
Pelo fato de ela não ter tido oportunidade de fundar sua casa de Candomblé, o cargo do culto à sua ancestralidade ficou para mim e é assim que me fortaleço, resisto e amo aquilo que me foi dado. Hoje, na comunidade, faço parte da Associação Vida Nova, como marisqueira, pois além de herdar o cargo de ialorixá de minha avó, estou dando continuidade aos trabalhos que meus pais desenvolveram ao longo da vida.
Sou ialorixá do Ilê Axé Oyà Omin, localizado na Pedra Furada/Mont Serrat. Fui iniciada no Ilê Axé Ominijà, onde sou Egbomi e venho ajudando a dar continuidade na casa, pois a grandiosa Iyá Clemilda Merces retornou para o Orun, deixando todo seu legado e uma casa para ser cuidada.
Hoje, tenho uma relação muito próxima com a comunidade, organizo o presente de Iemanjá todo ano, no qual reunimos toda comunidade, limpamos a maré e depois oferecemos o presente. Junto com a comunidade, minha casa de candomblé também organiza o dia 12 de outubro, festa beneficente que oferece comida e brinquedos às crianças depois da festa religiosa.”
Mãe Selma de Xangô
“Sou Yá Ominguntasse, mais conhecida como mãe Selma de Xangô ou Yá Selma Fragoso. O Fragoso vem de uma linhagem da família de meu pai. Sou filha de Dona Regina Araújo e seu Otaviano Victor Fragoso. Nasci e me criei na comunidade do Alto da Sereia, no Rio Vermelho. Estudei e me formei em magistério, fui dona de uma escola e de um salão de beleza, onde trabalhei como cabeleireira e manicure. Minha vida profissional começou muito cedo, aos 12 anos já fazia roupas em crochê. Sempre corri atrás dos meus objetivos e da minha independência.
Sou mãe de três filhas, que hoje são meus alicerces. Fui iniciada no Culto aos Orixás em Simões Filho, no dia 26/05/1985. Hoje, tenho minha roça de candomblé, localizada no Nordeste de Amaralina, comunidade onde construí não só uma roça, mas também uma família e boas amizades. No meu ilê leciono cursos de bordado richelieu e barra funda com a ideia de preservação da cultura de bordados do candomblé. Além desses cursos, acontecem, também, aulas de toques ancestrais,”
Ialorixá Mãe Iara de Oxum
“Sou Mãe Iara de Oxum, mulher de fala firme, mas ao mesmo tempo tranquila; sorridente e orgulhosa de ser do Candomblé, religião considerada como uma forma de resistência do povo negro na Bahia. Nasci em Salinas da Margarida e, atualmente, resido em Cajazeiras XI, onde fundei, há 21 anos, o Ilê Tomim Kiosise Ayo – Casa das Águas da Felicidade.
Além do terreiro, lidero a Associação Pássaros das Águas, instituição sem fins lucrativos que reúne 20 terreiros de candomblé e promove atividades para o povo de santo e para a população de Cajazeiras, como o Barracão Negra Fashion, que trabalha a autoestima e a conscientização de adolescentes negras/os e a Caminhada da Pedra de Xangô.
Há, também, os projetos Samba e Sopa, o Criança Feliz, Prato do Povo, ações culturais voltadas para as comunidades, diversão para as crianças e alimentos para população em situação de rua, respectivamente. Criei o Projeto Caixa para Reformas de Terreiros, em que já realizamos cinco reformas. Para mim, Candomblé é história e resistência. Com 43 anos de iniciada, sigo nessa luta para ultrapassar a maior dificuldade do povo de santo, que é alcançar a liberdade”.
O projeto Papo de Terreiro, do Programa Voz do Axé, recebeu o apoio do edital de bolsas de reportagem para coletivos de Salvador e região metropolitana do Instituto Fala.